20.6.10

de baixo do limoeiro

É engraçado. E pensar que foi aqui que tudo começou. À beira da porta de madeira gasta, por baixo do limoeiro, sentado no canteiro da hortelã.
É isso mesmo, sentado. Foi assim que começou. Com o meu avô na cadeira de baloiço, contando-me aquelas histórias de criança, que eu ouvia de olhos brilhantes.
Começou com coisas de princesas e dragões. Na altura, adorava, ficava horas entregue ao deleite de ouvir a sua voz áspera, deixando-me viajar em castelos, florestas assombradas e rios mágicos.
Depois, perdeu a piada. Comecei a crescer, e a fantasia deixou de ser suficiente. Comecei então a pedir ao meu avô histórias reais, quando me chegou o interesse da história.
Reis, imperadores, generais, heróis e guerras épicas, a Grécia, Roma e o Egipto, as Cruzadas e os Descobrimentos, todos cresciam no chão de calçada do jardim, por entre as ervas daninhas que ameaçavam invadir a soleira da porta.
O meu avô adorava história. Tinha uma biblioteca no sítio onde devia estar a dispensa, o que irritava solenemente a minha querida avó.

Mas voltou a perder a piada, quando já sabia tanto de história, que era difícil encontrar algo novo, e tudo aquilo que se encontrava, era tão igual ao anterior, que descobri que a história é monótona.
Chegou a vez de falarmos da terra. Não o planeta, nem a nossa aldeia. A terra, a terra onde crescem as plantas, a terra onde cresce o limoeiro e a hortelã, a terra a quem somos entregues depois da gloriosa aurora da vida se afogar no crepúsculo melancólico da morte.
Foi sol de pouca dura. Até que a minha avó me falou da vida passada do meu avô, vagamente, entre as batatas que estavam a cozer a carne que estava a assar.
Fui perguntar ao meu avô sobre o que a minha avó me tinha contado. Acordei-o de uma das suas sestas, mas isso não o irritou. Amavelmente, mostrou-me os seus poucos dentes no seu sorriso gentil.
Contou-me o seu amor com a minha avó, quando eles se encontravam na velha fonte, às escondidas, para o meu bisavô não descobrir do namoro entre os dois.
E depois, contou-me do meu tio, o meu tio que havia morrido com os seus jovens 16 anos. As lágrimas cintilaram na face ossuda e esquelética do meu avô.
Mas no fim, eu fui-me embora. Fui para a cidade, fui estudar e trabalhar. Durante 15 anos, não fui ver nem o meu avô, nem a minha avó.
Voltei passados esses 15 anos. A aldeia estava quase deserta e inalterável. O mundo mudara, e eu também, mas o local onde cresci, não.
O limoeiro estava agora maior, e as ervas que ameaçavam invadir a soleira da porta, tinham acabado por a invadir de verdade.
Bati à porta. Ouvi um leve murmúrio no seu interior, e entrei. Sentado numa cadeira de palhinha, escrevendo, com a mão a tremer, num papel amarelado, estava o meu avô, com mais 15 anos de rugas, menos dentes, mas o meu avô.
Nem olhou para a porta. Disse-me “Sr. António? Deixe as verduras aí no canto. Quando puder, pago-lhe, juro.”, com a sua voz áspera e tremeluzente.
Chamei-o. “Avô…”. A sua mão estancou. Começou a tremer. Já não tinha nenhum cabelo e manchas acastanhadas cobriam-lhe a pele.
Começou a tremer o queixo e os olhos encheram-se de lágrimas. Abraçou-se a mim, dizendo que estava sozinho e doente. Tossiu.
Senti o seu corpo desfalecer, as suas mãos soltarem-se. Abandonou todas as mágoas da vida agarrado a mim, e partiu para o descanso eterno. Chorei horas, sem me mexer.



(texto da autoria de joão manuel - melhor amigo)

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